Nunca é fácil ser ativista dos direitos dos animais no mundo árabe, mas durante a Eid Al-Adha, festa religiosa anual muçulmana, quando as ruas ficam cobertas com o sangue de ovelhas, vacas e camelos abatidos, tudo parece um pesadelo ainda maior.
“Ah, eu não aguento mais!”, lamentou Amina Abaza, estremecendo enquanto dirigia através de carcaças e vísceras penduradas, com ovelhas condenadas balindo ao seu redor. “O islã tem como centro a compaixão, mas nós não a praticamos!”
Vigorosa senhora de 55 anos de idade, Abaza passou uma década em campanha para poupar os animais ou pelo menos exigir métodos mais humanizados de abate. Ela ainda tem um longo caminho a percorrer.
A cena vista em Zeinab Sayyida, bairro de classe trabalhadora do Cairo, na semana passada era bastante típica: camelos berrando enquanto açougueiros encharcados de sangue lutavam com dezenas de animais, deitavam-nos no chão e lhes cortavam a garganta diante da admiração da multidão.
Moradores observavam de suas janelas e torciam, tirando fotos com seus telefones celulares. Meninos passavam as mãos no sangue e lambuzavam uns aos outros, enquanto os adolescentes ajudavam a retirar entranhas fumegantes das carcaças. Dezenas de pessoas formaram fila para comprar carne fresca para o ritual, de pé em poças de sangue coagulado.
Tradição
Para a maioria dos muçulmanos o feriado, que terminou na noite de sexta-feira, é um momento alegre que tem a caridade como tema central: segundo a tradição, um terço da carne abatida deve ser dado aos parentes e um terceiro aos pobres. É um presente de boas-vindas ao Egito, onde o preço da carne tem aumentado e muitas famílias já não podem comprá-la.
O que incomoda Abaza e outros ativistas não é o princípio do Eid Al-Adha (a Festa do Sacrifício) que comemora a história bíblica na qual Deus permite a Abraão o abate de um carneiro em vez do seu próprio filho. Também não se opõem à matança de animais em si, já que não são vegetarianos. Em vez disso, eles reclamam que os açougueiros deixam de cumprir até mesmo as restrições do próprio islã: de que o animal não pode ser maltratado e não deve ver ou ouvir outros animais sendo mortos.
Amadores abatem suas próprias ovelhas em casa em muitos países árabes, sem nenhum treinamento especial sobre como poupar a dor aos animais. É comum ver homens colocando ovelhas aterrorizados em caminhões e batendo nos animais para conduzi-los à matança. Nos matadouros, alguns trabalhadores sodomizam os animais com facas para levá-los ao fim, diz Abaza e outros ativistas.
“Se você quer passar uma boa imagem dos muçulmanos e do Alcorão, por que faria isso?” disse Abaza, sua voz indignada. “Por que nós muçulmanos somos conhecidos por este tipo de comportamento?”
Escândalo
Abaza e um pequeno e crescente grupo de ativistas tiveram impacto. Em 2006, ela ajudou um repórter australiano a filmar um matadouro com uma câmera escondida. O resultado criou um escândalo na Austrália e logo depois o governo suspendeu a exportação de ovinos vivos para o Egito.
Isso deu a Abaza alguma atenção, principalmente negativa. “As pessoas pensam que estou atacando o islã”, ela disse. “Elas me acusaram de ser americana, judia ou maçom”.
É verdade que os ocidentais tendem a recuar um pouco diante do massacre que ocorre no Eid Al-Adha, apesar da realidade de que muitos animais são abatidos no Ocidente de maneira semelhante. Os muçulmanos podem ser sensíveis sobre a reação ocidental e Abaza, que cresceu aqui em uma família abastada, é um alvo fácil.
Quando ela começou a sua organização em 2001, a Sociedade para a Proteção dos Direitos dos Animais no Egito, sua retórica era em grande parte emprestada de outros grupos análogos ocidentais. “Eu descobri que existem direitos dos animais no islã”, ela disse. “Uma vez que começamos a usar argumentos islâmicos, eles passaram a não nos atacar tanto”.
Algumas autoridades religiosas concordam com Abaza, mas raramente levantam as suas vozes, certamente não no feriado religioso. “Os muçulmanos estão passando por um período de degeneração onde estão aplicando a sharia (lei islâmica) circunstancialmente”, disse o xeque Ahmed Al-Baba, um clérigo sunita e membro da Fundação Conselho Islâmico no Líbano.”Algumas pessoas comuns fazem o processo de abate de uma forma errada. Eles não têm experiência, eles não sabem que somos obrigados a não prejudicar o animal”.
Idade mínima
Na verdade, o Alcorão e as tradições islâmicas escritas que formam a sharia especificam a idade mínima para os animais serem abatidos e fornece informações sobre como evitar dores, disse Al-Baba.
Com toda a franqueza, essas regras são difíceis de aplicar em larga escala. No matadouro Basateen, perto do amplo cemitério conhecido como a Cidade dos Mortos, açougueiros caminham com botas de borracha de cano alto, rodeados por lagos de fezes, sangue e urina. Foi nele que o repórter australiano documentou abusos de animais em 2006.
Mas os procedimentos não parecem ter mudado. Na segunda-feira, um açougueiro os descreveu assim: “Nós apenas jogamos os animais de lado e cortamos sua garganta dizendo ‘Allahu akbar’”. Questionado se os animais são capazes de ver e ouvir os outros serem mortos, ele respondeu: “Claro, por que não?”
Celebração
Abaza, ela escolheu celebrar o feriado de maneira original. Ela dirigiu-se ao mercado de ovinos local, onde comprou uma ovelha fêmea por 1 mil libras egípcias (cerca de US$ 175) e pediu ao açougueiro para colocá-la na parte de trás de seu carro. Os homens se ofereceram para o abate e ao ouvir que ela pretendia “resgatar” o animal não conseguiram conter o riso. Ela não prestou atenção. “Méee! Você tem sorte!”, disse ela alegremente, sorrindo para o animal.
Então seguiu até sua fazenda na cidade de Sakara, nos arredores do Cairo, onde mantém jumentos e ovelhas como animais de estimação. No caminho, ela estremeceu quando passou por caminhões cheios de ovinos para abate e dezenas de carcaças penduradas ao sol. “É um dia sangrento”, ela disse com desdém. “Eu odeio essa festa. Milhões de animais serão mortos”.
*Por Robert F. Worth, com reportagem de Dawlat Magdy e Scott Nelson