Novas tecnologias são alternativa ao uso de animais na ciência

Em março de 2011, a costa leste do Japão foi sacudida por um violento terremoto que, entre outros desastres, causou um sério acidente nuclear na usina de Fukushima. Um ano após a tragédia, a reconstrução das áreas atingidas envolve a delicada tarefa de limpar os terrenos contaminados pela radiação. Para isso, o governo japonês contará com a ajuda de velhos conhecidos dos cientistas: as cobaias animais.

Complementando experimentos realizados ainda em outubro na região, macacos e porcos equipados com medidores eletrônicos e GPS serão enviados neste mês ao centro das florestas de Fukushima. O objetivo da missão é mapear as áreas contaminadas e medir o impacto da radiação sobre a flora e a fauna dos arredores da usina. A decisão trouxe à tona o debate ético sobre os direitos dos animais: será que, em pleno século XXI, ainda é necessário recorrer a cobaias neste tipo de ação?

O uso de animais vivos em experimentos científicos e didáticos compõe uma prática chamada vivissecção, estabelecida como metodologia científica há mais de 200 anos. De lá para cá, tanto a ciência quanto a ética progrediram muito, como explica o biólogo Thales Tréz, professor do Instituto de Ciências e Letras da Universidade de Alfenas (MG). “Cerca de 200 animais por segundo são mortos em atividades de pesquisa. O impacto disso em nossa sociedade é considerável, pela própria evolução moral que historicamente passamos. Hoje temos uma percepção muito mais sensível do conceito de animal”, esclarece.

Tréz é coordenador do site 1RNet, cuja letra R do nome corresponde a um princípio que vem ganhando força entre o meio científico experimental nos últimos 30 anos: replacement, substituição da vivissecção por métodos alternativos. Entre as soluções já adotadas nos Estados Unidos e em países da Europa estão os modelos mecânicos e computadorizados, a experimentação in vitro, aprendizagem por meio de vídeos e filmes interativos, uso responsável de animais e, quando devidamente supervisionadas, até mesmo a autoexperimentação.

As vantagens dos métodos substitutivos vão além da questão ética, defende quem é a favor da substituição. Além de estarem sincronizados com a produção tecnológica atual, pelo aspecto financeiro, as novas tecnologias podem ser benéficas também para a indústria farmacêutica e cosmética. Tréz conta que, apesar dos “exitosos” resultados com animais, apenas uma em cada 10 substâncias testadas produz o mesmo efeito em humanos – o que significa um grande prejuízo para os laboratórios, cujos investimentos em pesquisas para desenvolver novos produtos ficam na faixa de US$ 14 bilhões por ano. “A combinação das tecnologias substitutivas vem gerando resultados muito mais precisos em relação à condição humana, quando comparada com a utilização de animais, pois essas novas abordagens trabalham com material humano”, explica. Os métodos substitutivos são também econômicos, pois não exigem gastos com a compra, criação e manutenção das cobaias.

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A legislação
No Brasil, os esforços legais para regulamentar o uso de animais em experimentos científicos vem de longa data, com as primeiras iniciativas datando de 1934. No entanto, o país não tinha uma legislação federal sobre o assunto até 2008, quando, após oito anos de tramitação no Congresso, foi aprovada a Lei Arouca. A medida deu origem ao Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal (Concea), órgão normativo ligado ao Ministério da Ciência e Tecnologia e às Comissões de Ética no Uso de Animais (CEUAs), que credenciam os centros de pesquisa e instituições de ensino junto ao Concea. A aprovação da Lei Arouca deu fim aos projetos de leis municipais que visavam a proibir a experimentação animal, inclusive uma que já vigorava em Florianópolis, com o argumento de que a proibição causaria sérios prejuízos à pesquisa científica.

Porém, para Laerte Fernando Levai, promotor de justiça de São Paulo e especialista em Bioética, a Lei Arouca acaba legitimando os maus-tratos com os animais sob o pretexto de fazer ciência. “Trata-se de uma legislação que está na contramão da história. Enquanto países da Europa estão abolindo o uso de animais em pesquisas e no ensino, aqui nós editamos uma lei que reafirma e estimula a exploração animal como método oficial de pesquisa”, diz. Levai relembra que o Brasil, como poucos países, tem preceitos constitucionais que, em tese, asseguram a proteção dos animais: segundo o artigo 32 da Lei 9.605/08, é crime a realização de procedimentos dolorosos ou cruéis em animais vivos, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos alternativos. Deste ponto de vista, a Lei Arouca aparece como um salvo-conduto para práticas não somente antiéticas como inconstitucionais.

Se os métodos substitutivos seriam mais éticos, eficientes, baratos e coerentes com a lei, por que a vivissecção ainda é a prática de pesquisa predominante no país? Para Levai, trata-se de uma força de tradição: em geral, os pesquisadores se acostumaram, ao longo dos séculos, a utilizar uma metodologia errada para fazer ciência. “A maioria dos pesquisadores não se preocupa com as causas das doenças, apenas com suas consequências. Quem mais lucra com isso é a indústria farmacêutica. Daí a conclusão de que se o cientista abandonasse o uso de animais, para centrar seus esforços no próprio homem, a pesquisa médica seria bem mais eficiente”, diz Levai.

Para os cientistas, são as limitações impostas pela lei que mais impedem a disseminação das novas tecnologias na pesquisa. “A validação dos métodos substitutivos é o grande problema. Quando o pesquisador começa a trabalhar, normalmente não quer recorrer aos animais, mas ele não tem saída”, conta Carlos Müller, coordenador do Centro de Experimentação Animal do Instituto Oswaldo Cruz. Ele explica que, para que as pesquisas se desenvolvam de modo a garantir os melhores resultados possíveis, é necessário o reconhecimento da metodologia utilizada por parte das CEUAs. No entanto, os métodos alternativos foram muito pouco estudados até agora no país, tornando mais viável recorrer a procedimentos tradicionais e normatizados. O biólogo Thales Tréz também acredita que o meio científico não encontra uma cultura propícia para esse tipo de crítica. “Não há fomento no Brasil para que outros modelos entrem em cena no lugar da modelagem animal – há, sim, toda uma estrutura que sustenta esse método, como os biotérios e revistas especializadas”, conta.

Sinais de mudança
Por ora, é nas instituições de ensino que os primeiros passos em direção à substituição do uso de animais pelas novas tecnologias mais se fazem sentir no Brasil. “Como se trata apenas de ilustrar conhecimentos já sabidos, as práticas com animais se tornam obsoletas frente a grande diversidade de recursos tecnológicos disponíveis hoje”, observa Tréz.

Em São Paulo, o uso de cobaias em aulas práticas foi proibido na Faculdade de Medicina do ABC com a emissão de uma portaria em 2007. A médica Nédia Hallage, professora de Infectologia na faculdade, conta que, em um primeiro momento, alguns alunos e professores duvidaram dos benefícios da mudança por achar que ela comprometeria a qualidade das disciplinas. A mesma reação foi observada pelo professor Emerson Contesini na Faculdade de Medicina Veterinária da UFRGS (FAVET), onde as mudanças iniciaram há cerca de 10 anos e foram intensificadas com a aprovação da Lei Arouca. No entanto, o uso dos métodos substitutivos não só não prejudicou as condições de ensino como auxiliou na sensibilização dos alunos. “Não houve nenhuma perda didática. Por ele não ter que sacrificar um ser vivo, o que tivemos foi a humanização do aluno das áreas da saúde”, explica Nédia.

Na Faculdade de Medicina do ABC, os animais de pequeno porte foram substituídos por modelos computadorizados nas disciplinas de farmacologia e fisiologia. Já no aprendizado de técnica cirúrgica, os modelos são cães embalsamados, mortos por causas naturais e doados para a instituição. A conservação dos cães também é utilizada pela UFRGS, além de um extenso trabalho com recursos audiovisuais. “Adquirimos máquina fotográfica e filmadora para produzir filmes e fotos didáticas. Meus orientandos de doutorado, com alguns alunos da graduação, já iniciaram um piloto de execução de fotos e filmes para as aulas e a proposta é depois incluir na página da FAVET”, conta o professor Emerson. A discussão sobre métodos substitutivos para o ensino cirúrgico também compõe uma disciplina do programa de pós-graduação da universidade desde 2006, inclusive estimulando os alunos a apresentar seu próprio método.

As novas tecnologias ainda promoveram a aproximação de alunos que não concordam com a vivissecção. “Antes, alguns alunos se recusavam a assistir às aulas por causa dos maus-tratos ao animal. Há 30 anos, tinha aulas que eu não conseguia assistir porque me causavam muito sofrimento”, conta a professora Nédia. Ela avalia as iniciativas como muito importantes para a humanização dos profissionais. “Quanto mais se difundir que essa prática não é necessária, que não há comprometimento na qualidade das aulas, melhor para o ensino no Brasil.”

Fonte: Terra