Antes proibidos, cachorros viram fenômeno de popularidade na China

Xiangzi – que significa “sortudo” – não poderia ser um nome melhor para este bem cuidado husky siberiano

Sua dona, Qiu Hong, que trabalha com marketing esportivo, mima o animal com dois passeios diários, brinquedos e utensílios de cuidados com a higiene importados dos Estados Unidos, cerca de US$ 300 em ração e comidas, além do seu próprio sofá no apartamento.

Quando a cidade fica monótona, Qiu carrega Xiangzi no carro e o leva para um passeio – pelas estepes do interior da Mongólia, sete horas ao norte. “É um pasto enorme. Bem longe, mas muito bonito”, ela disse. “Ele adora assustar as ovelhas e fazê-las correr por toda parte”.

Metaforicamente falando, Xiangzi não é apenas um cachorro, mas um fenômeno social – e, talvez, um indicador da rapidez com que a China está passando por sua transformação de país pobre camponês a primeiro mundo.

‘Dog Boom’
Há vinte anos, quase não havia cachorros em Pequim. Os poucos que havia corriam o risco de acabar num prato de jantar. É possível encontrar ainda hoje pratos à base de cachorro. Mas é muito mais fácil encontrar pet shops de cachorros, sites de cachorros, redes sociais de cachorros, piscinas para cachorros – mais recentemente, é possível até frequentar cinemas e bares que aceitam cachorros na área de clubes noturnos no centro de Pequim.

Segundo autoridades da cidade, há 900 mil cachorros na cidade, e esse número cresce 10% ao ano. Isso são os registrados. Outros milhares não possuem licença.

A forma como essa transformação ocorreu representa, de certa forma, a história da China moderna. Séculos atrás, a elite chinesa tinha cachorros como animais de estimação; diz-se que o pequinês data dos anos 700 d.C., quando os imperadores chineses o tornaram o cachorro do palácio – e executavam qualquer que pessoa que o roubasse.

No entanto, na era comunista, os cachorros tinham mais um papel de guardas, pastores ou refeições do que companheiros. Dogmas ideológicos e necessidades durante os muitos anos de vacas magras da China renderam aos animais de estimação um caráter de luxo burguês. De fato, depois que os cachorros começaram a aparecer nos lares de Pequim, o governo decretou, em 1983, a proibição na cidade dos cães e sete outros animais, incluindo porcos e patos.

Economia e companhia
O renascimento econômico da China mudou tudo isso, pelo menos nas cidades prósperas. “As pessoas costumavam focar em melhorar suas próprias vidas, e não estavam familiarizadas com a criação de um cachorro”, disse Qiu. “Mas, com o desenvolvimento econômico, as perspectivas das pessoas mudaram. Há muito estresse, e ter um cachorro é uma forma de aliviá-lo”.

No entanto, há outros fatores para a recente popularidade desses animais: muitos donos de cachorros também dizem que a política do filho único da China tem espalhado o entusiasmo por criar um cachorro como forma de ter companhia para a criança, em famílias com filho, e preencher lares vazios quando o filho cresce e sai de casa.

Alguns dizem que os cachorros se tornaram um símbolo de status para os moradores de Pequim em escalada social. He Yan, 25 anos, dona de dois cachorros pequenos de raça híbrida, chamados Guoguo e Tangtang, disse que jovens como ela são chamados de “gouyou”, ou amigos dos cachorros. Os cães, segundo ela, se tornaram uma forma de exibir o gosto pessoal e de encontrar pessoas com interesses parecidos.

Para determinada classe com mais dinheiro do que juízo, ter um cão de uma raça especialmente premiada se tornou o equivalente chinês de dirigir um Lamborghini para ir ao mercado da esquina. O supra-sumo da pretensão parece ser o mastim tibetano, uma raça grande e feroz do platô tibetano que, diz a tradição, foi organizada por Genghis Khan numa unidade militar K-9 de 30 mil animais.

No ano passo, foi amplamente divulgado que uma mulher de Xi’an, cidade a oeste de Pequim, teria pago 4 milhões de renminbi – aproximadamente US$ 600 mil – por um único cachorro que foi escoltado para seu novo lar por comboio de 30 Mercedes.

Devoção
Aparentemente, os cachorros de Pequim se tornaram, assim como no Ocidente, alvo de afeição – até devoção – por parte dos donos. Nos finais de semana, centenas de donos de cachorros vão ao Pet Park, um SPA canino de 12 hectares a leste de Pequim, que inclui um restaurante para os cães e para os donos, um ringue para shows de cachorros, um percurso de agility para os animais, um cemitério canino e uma capela, um albergue para donos de cachorros, canil com 600 baias (onde os donos devem passar por uma tina desinfetante antes de entrar) e duas piscinas em forma de osso.

Os que matriculam seus cães têm garantia de uma hora de brincadeiras com o cachorro, banho semanal e um site onde toda segunda-feita eles podem ver fotos novas de seu animalzinho. O parque, inaugurado no ano passado, foi ideia de um entusiasta por cachorros que fez uma fortuna no ramo de refrigeradores, de acordo com Li Zixiao, gerente de vendas do parque.

“Todo mundo que traz seu cachorro para cá o considera como um filho”, ele disse.

Oposição
Mas uma coisa é certa, nem todos os moradores de Pequim são fãs dos cachorros. Um blog da cidade, o City Dog Forbidden, modera um debate acalorado entre os fanáticos por cães e as pessoas que acreditam, como um indivíduo escreveu, que os cachorros “estão perturbando seriamente a vida normal das outras pessoas”.

“O nascimento das necessidades humanas deve ser planejado, mas qualquer um pode ter um cachorro?”, perguntava um incrédulo. “Os recursos que conservamos por termos menos pessoas, nós os damos aos cães? É um problema muito sério. Estamos dizendo que as pessoas valem menos que os cachorros?”

Mesmo assim, a devoção dos donos de cachorros daqui parece ter amaciado até o coração do duro governo municipal. Em 1994, autoridades de Pequim relaxaram sua política de proibição de cães para “restringir severamente” os cachorros; em 2003, ela foi novamente mudada para permitir que qualquer pessoa pudesse ter um, mas limitando os cachorros da cidade a um tamanho máximo de 35cm de altura.

Em grande parte a lei não é considerada pelos que adoram cachorros – segundo eles, a lei é arbitrária e injusta. Diariamente, milhares de donos de cachorros de grande porte esperam até meia-noite, quando o policiamento é mais esparso, para caminhar pelas ruelas da cidade com seus adorados golden retrievers, labradores e pastores alemães. Em julho, uma proposta para aliviar as restrições ainda mais, submetida a um órgão consultivo legislador nacional, gerou quase 30 mil comentários na internet, em comparação a algumas centenas de opiniões para a maioria das outras propostas.

A cidade até mesmo abriu seu próprio parque para cachorros, minúsculo, com um canil rudimentar, um percurso de agility e uma piscina em forma de rim que, no verão, fica tão lotada quanto qualquer praia urbana.

Fora do cardápio
E o pequinês frito pode estar com os dias contados. Uma proposta formal para banir o consumo de carne de cachorro foi submetida à legislatura semi-independente da China, a Assembleia Popular Nacional. Nada que a legislatura faz se torna lei sem o consentimento do alto escalão, mas a proposta sobreviveu a duas rodadas de comentários públicos, o que é um bom sinal.

O patrocinador da proposta, um professor de Direito chamado Chang Jiwen, diz não adorar tanto os cachorros, mas adorar a China. “Outros países desenvolvidos possuem leis de proteção aos animais”, disse ele, em entrevista por telefone. “Com a China se desenvolvendo tão rapidamente, e cada vez mais pessoas criando bichos de estimação, as pessoas têm que saber como tratar bem aos animais”.

Fonte: G1