Auxiliar na mobilidade e garantir mais segurança e independência ao deficiente visual. Essas são as principais tarefas dos cães-guia, animais que dão vida ativa a quem nasceu cego ou perdeu a visão. O problema é que, no Brasil, esse ainda é um sonho distante. Entidades ligadas ao tema estimam que atualmente existam apenas 80 cães para 1,4 milhão de deficientes em todo o País.
Entre os principais motivos que impedem que mais pessoas tenham um desses animais é o preço. Para treinar um cão, é necessário desembolsar entre R$ 28 mil e R$ 30 mil, que são gastos com alimentação, exames médicos, vacinas e equipamentos, além dos salários e verbas para ajuda de custo dos treinadores. Em muitos casos, os interessados têm que viajar para outros estados ou países em busca de um cão preparado.
As entidades que formam os animais têm de se preocupar também com a escolha das matrizes – o casal reprodutor que dará origem aos filhotes. A coordenadora do Projeto Cão Guia da ADA (Associação Brasiliense de Ações Comunitárias), Maria Lúcia de Campos, explica que o par tem de ser saudável para que a cria apresente menos riscos de doenças hereditárias.
Um dos males que mais acomete os cães de médio e grande portes é a displasia.”Esta doença acomete as articulações, principalmente na região coxo-femural. Isso faz com que acabe a lubrificação e haja um desgaste ósseo, o que causa dor e atrapalha a mobilidade”, conta a coordenadora. A doença é avaliada em graus que vão das letras A até E. Para que um cachorro seja utilizado como guia, deve ter até o grau C, no máximo. Para diagnosticar a doença, são feitos diversos diagnósticos por imagem desde o nascimento do animal.
Apesar do alto custo, a coordenadora se queixa da falta de assistência por parte do poder público. “Os governos só demonstram interesse naquilo que dê retorno político.” Em São Paulo, o governador Geraldo Alckmin (PSDB) anunciou em abril projeto para a construção de um centro de treinamento de cães-guia na USP (Universidade de São Paulo). O orçamento para a obra é de R$ 2,5 milhões e o prédio terá capacidade para até 92 cães. O prédio só deverá ficar pronto em 2013.
No Grande ABC, cuja população estimada de cegos é 17,5 mil pessoas, existem pelo menos dois cães-guia. Um dos deficientes que conseguiu um animal foi o consultor de informática Luiz Eduardo Porto de Oliveira, 43 anos, de São Caetano. Há três anos ele ganhou a companhia de Harry, um labrador preto treinado em Brasília.
Oliveira ficou cego aos 23 anos, quando foi acometido por uma retinoise pigmentar. Desde então, passou a utilizar a bengala como instrumento de auxílio para se locomover. A partir de 2001, iniciou a busca por um cão-guia. Em 2006, entrou na fila de espera do instituto brasiliense, sendo chamado apenas dois anos depois.
Atualmente, o consultor se sente mais seguro para caminhar, o que resulta em independência. “Quem tem o cão-guia, jamais quer voltar para a bengala. Eu faço tudo, tenho uma vida normal”, conta. Oliveira ressalta que, desde que começou a contar com Harry, nunca mais caiu ou bateu a cabeça em orelhões, conhecidos vilões dos cegos. “Eles são treinados para desviar de obstáculos aéreos.”
Reação ainda é de espanto e surpresa
“Nossa, é um cão-guia?” “Que bonitinho! Posso por a mão?” Essas são algumas das reações de quem vê um deficiente visual sendo guiado por um animal pelas ruas. A equipe do Diário andou por cerca de uma hora e meia pelo Centro de São Caetano acompanhada do consultor de informática Luiz Eduardo Porto de Oliveira, 43 anos, e de Harry, o labrador preto que orienta seus passos.
Por lei, os estabelecimentos públicos e privados são obrigados a permitir a entrada desse tipo de animal. Em nenhum dos locais visitados, como shopping, lanchonete e loja de roupas, Harry foi barrado. Mesmo assim, muitos demonstravam espanto ao ver pela primeira vez um cão-guia.
A aposentada Joaquina Ferreira, 72, queria brincar com o labrador. “Adoro animais, na minha casa eu tenho três. Isso é uma coisa abençoada.” Ela contou que nunca havia se deparado com um cão-guia em outras ocasiões.
Apesar do temperamento manso e da boa aparência do cão, não é aconselhado fazer carinho no bicho enquanto ele guia alguém. “Isso acaba desconcentrando o cachorro e pondo em risco nossa segurança. As pessoas têm que entender que ele está a trabalho”, alerta Oliveira. O consultor diz que nem sempre as orientações são atendidas. “Muitos acham que estamos sendo antipáticos.”
Durante a semana, a reportagem também acompanhou os passos de Ema, uma filhote de labrador que está sendo treinada ser guia. Quem acompanha o treinamento é a estudante Vânia Feitosa, 22, que não é deficiente visual. Mesmo ainda não sendo uma cadela formada, Ema também não foi impedida de entrar nos lugares por onde visitou, como lojas e praça de alimentação do Shopping Grand Plaza, em Santo André, e a estação de trem da CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos), de onde partiu para uma viagem de ida e volta até a Estação de Utinga. Dentro do estabelecimento, a dupla teve dificuldade para caminhar, devido ao grande número de curiosos que as paravam no meio do caminho.
A estudante conta, no entanto, que já teve dificuldades para passear com a cachorra. “No trólebus e no metrô, muitas vezes tentaram nos impedir de entrar. Mas foi só eu mostrar a lei para os funcionários que eles acabaram cedendo. Mesmo assim, foi meio a contragosto”, relata.
Ema faz parte de um projeto do Sesi (Serviço Social da Indústria) para treinar novos animais. A ação é fruto de uma parceria com a Fundação Dorina Nowill e o instituto Meus Olhos Têm Quatro Patas. A coordenadora do projeto, Beatriz Canal, informa que o investimento aplicado para a capacitação de 32 cães é de R$ 1 milhão.
Treinamento demora cerca de dois anos
Para que um filhote esteja pronto para guiar uma pessoa, o tempo de treinamento é de aproximadamente dois anos. A capacitação é dividida em três etapas. Na primeira, o animal passa por um processo de socialização. Nesse período, convive com uma família de pessoas sem deficiência, que é incumbida de levar o cachorro para passear em locais de grande circulação para acostumar com o movimento. Esse processo encerra quando o bicho completa um ano.
Em seguida, o animal é levado novamente ao canil, onde passará pelo processo de treinamento. “A ideia do treinamento é mostrar para o cão que o dono é cego e precisa dele. É criar uma consciência. Não é um adestramento como nos cães da polícia, e sim uma educação”, explica o economista Luiz Alberto Melchert Silva, presidente do Instituto Meus Olhos Têm Quatro Patas. Esta fase dura entre seis e oito meses.
Na última etapa do treinamento, o cão inicia a convivência com o cego. Nessa etapa, que leva aproximadamente três meses, o deficiente aprende a interpretar os sinais emitidos pelo animal, como alerta de obstáculos, por exemplo.
A presidente do Instituto Iris, Thays Martinez, foi uma das primeiras pessoas a contar com cães-guia no Brasil. Em 2000, passou a ter a companhia de Boris, um labrador amarelo treinado nos Estados Unidos. O cachorro foi aposentado em 2008 e faleceu em 2009. Desde então, Thays passou a conviver com Diesel, um labrador na cor preta.
Ela conta que, antes da criação da lei federal 11.126, de 2005, a dificuldade para entrar com o cachorro nos locais de grande circulação era ainda mais difícil. Ela travou batalha judicial com o Metrô de São Paulo, que não queria deixá-la entrar nas composições com o animal. Foi necessária uma liminar que garantisse o acesso. “Infelizmente, as pessoas têm falta de conhecimento e acabam rejeitando os animais por ignorância.”